segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A Democrática Capoeira Regional

       
Vive-se hoje no Brasil uma situação de intolerância e de tentativas de imposição de ‘verdades’ que afeta todos os campos da sociedade. Basta que o outro tenha uma opinião contrária para que surjam as argumentações de que aquilo não presta, de que a situação atual é culpa do fulano, de que você é um idiota por ter outra forma de ver as coisas.
Essa situação ficou evidente nas últimas eleições, mas transcendeu as barreiras da política partidária e se evidencia também na Capoeira. Não que os antagonismos dentro desse universo não existissem antes, mas valorizava-se mais a diversidade como sendo a grande força da Capoeira. Toda tentativa de padronização ao todo caía por terra, sendo relegada aos grupos, associações, federações, que assim o faziam àqueles que se submetiam aos tais acordos internos.
Mestres Bimba e Pastinha coexistiam, cada um com as suas formas de proceder, diferentes, mas em prol da Capoeira. Em farto material bibliográfico e documental, bem como na História Oral ainda disponível com os eternos discípulos de Bimba, a este toda a glória de ter tirado a Capoeira da marginalidade. Se hoje a nossa arte está em mais de cento e cinquenta países, em todos os continentes, em todos os estados do Brasil, é porque, lá atrás, Manoel dos Reis Machado trilhou um caminho diferente daquele que fez com que a Capoeira fosse proibida pelo código penal.
Visionário, Mestre Bimba identificou que se quisesse de fato fazer valer a sua frase, que dizia “Eu fiz a Capoeira Regional pro mundo”, ele deveria se infiltrar na sociedade que não teria acesso à Capoeira enquanto ela tivesse somente como habitat os guetos, cortiços, portos e mercados. Isso foi uma forma de democratizar a prática da Capoeira e, num segundo momento, abrir as portas da descriminalização.
É inegável que havia interesse do ‘Estado Novo’, que na busca de uma nova legitimidade, fez o governo buscar subsídios em inúmeros intelectuais da nova ciência que se organizava no Brasil: a Sociologia, representada em Gilberto Freyre, Artur Ramos, Oracy Nogueira, entre outros. Ao primeiro citado, sua principal obra – Casa Grande Senzala - é enquadrada como base para a criação do Mito da Democracia Racial, que serviu para camuflar o racismo existente desde sempre no Brasil.
 Influenciado por esse novo saber, o então Presidente, Getúlio Vargas, construíra um novo modelo de nação. De pátria dos europeus nos trópicos em busca da civilização, o Brasil se tornava um país com uma civilização original, o luso- tropicalismo, capaz de dar lições às outras nações do mundo por meio da mestiçagem.
Fato é que havia um interesse do Estado, assim como havia em Mestre Bimba, de fazer com que a Capoeira se expandisse. Mestre Bimba usou esta via de mão dupla a seu favor.
A sua metodologia, o seu ritual, em nada foram embranquecedores da Capoeira, pelo contrário, tornaram os brancos mais negros; o berimbau de ponta é mais antigo e africano do que os berimbaus brasileiros feitos com a base cortada; o atabaque usado esporadicamente em festas de largo, passa a ser usado com mais rotina na Capoeira somente na década de 1960, nos shows folclóricos da Bahia, portanto, não foi Mestre Bimba quem tirou o instrumento de onde ele nem se fazia presente; Mestre Bimba usava o atabaque nos rituais de Candomblé, dos quais fazia parte junto à Mãe Alice, e nunca negou a sua religiosidade.
Ainda assim, há pessoas que afirmam que Mestre Bimba descaracterizou a Capoeira para poder atuar; que ele ‘higienizou’, tirando elementos presentes nos rituais anteriores aos de sua metodologia; que ele ‘embranqueceu’ a Capoeira. Reforço, esquecem-se de que sem Mestre Bimba a Capoeira, de modo geral, não chegaria até aqui, firme e forte, em todas as suas vertentes.
Na Regional de hoje em dia, a democratização proposta por Mestre Bimba continua viva. É lindo de ver pessoas de diferentes grupos, alunos novos e antigos, gêneros e etnias distintos, tendo a possibilidade de se expressarem na roda com harmonia e respeito ao ritual criado por Mestre Bimba e muito bem preservado pelo seu filho, Mestre Nenel.
Aos que não se identificam, fica o direito de ir e vir, um dos pilares da democracia, ou seja, ‘não gosto, não vou’. Porém, comparar um ritual secular de tamanha significância com qualquer outra Capoeira, no intuito de diminuir a herança cultural da Regional, é no mínimo fruto da intolerância que faz com que não se enxergue coisas óbvias e que se acredite que apenas a sua forma de ver o mundo é a correta.
Iê, Viva seu Bimba...


Por: Fernando Bueno (Mestre Tuti - SC)

Nenhum comentário:

Postar um comentário