Vive-se
hoje no Brasil uma situação de intolerância e de tentativas de imposição de ‘verdades’
que afeta todos os campos da sociedade. Basta que o outro tenha uma opinião
contrária para que surjam as argumentações de que aquilo não presta, de que a
situação atual é culpa do fulano, de que você é um idiota por ter outra forma
de ver as coisas.
Essa
situação ficou evidente nas últimas eleições, mas transcendeu as barreiras da
política partidária e se evidencia também na Capoeira. Não que os antagonismos
dentro desse universo não existissem antes, mas valorizava-se mais a
diversidade como sendo a grande força da Capoeira. Toda tentativa de
padronização ao todo caía por terra, sendo relegada aos grupos, associações,
federações, que assim o faziam àqueles que se submetiam aos tais acordos
internos.
Mestres
Bimba e Pastinha coexistiam, cada um com as suas formas de proceder,
diferentes, mas em prol da Capoeira. Em farto material bibliográfico e
documental, bem como na História Oral ainda disponível com os eternos
discípulos de Bimba, a este toda a glória de ter tirado a Capoeira da
marginalidade. Se hoje a nossa arte está em mais de cento e cinquenta países,
em todos os continentes, em todos os estados do Brasil, é porque, lá atrás,
Manoel dos Reis Machado trilhou um caminho diferente daquele que fez com que a
Capoeira fosse proibida pelo código penal.
Visionário,
Mestre Bimba identificou que se quisesse de fato fazer valer a sua frase, que
dizia “Eu fiz a Capoeira Regional pro mundo”, ele deveria se infiltrar na
sociedade que não teria acesso à Capoeira enquanto ela tivesse somente como
habitat os guetos, cortiços, portos e mercados. Isso foi uma forma de
democratizar a prática da Capoeira e, num segundo momento, abrir as portas da
descriminalização.
É
inegável que havia interesse do ‘Estado Novo’, que na busca de uma nova legitimidade,
fez o governo buscar subsídios em inúmeros intelectuais da nova ciência que se
organizava no Brasil: a Sociologia, representada em Gilberto Freyre, Artur
Ramos, Oracy Nogueira, entre outros. Ao primeiro citado, sua principal obra –
Casa Grande Senzala - é enquadrada como base para a criação do Mito da
Democracia Racial, que serviu para camuflar o racismo existente desde sempre no
Brasil.
Influenciado por esse novo saber, o
então Presidente, Getúlio Vargas, construíra um novo modelo de nação. De pátria
dos europeus nos trópicos em busca da civilização, o Brasil se tornava um país
com uma civilização original, o luso- tropicalismo, capaz de dar lições às
outras nações do mundo por meio da mestiçagem.
Fato
é que havia um interesse do Estado, assim como havia em Mestre Bimba, de fazer
com que a Capoeira se expandisse. Mestre Bimba usou esta via de mão dupla a seu
favor.
A
sua metodologia, o seu ritual, em nada foram embranquecedores da Capoeira, pelo
contrário, tornaram os brancos mais negros; o berimbau de ponta é mais antigo e
africano do que os berimbaus brasileiros feitos com a base cortada; o atabaque usado
esporadicamente em festas de largo, passa a ser usado com mais rotina na
Capoeira somente na década de 1960, nos shows folclóricos da Bahia, portanto,
não foi Mestre Bimba quem tirou o instrumento de onde ele nem se fazia
presente; Mestre Bimba usava o atabaque nos rituais de Candomblé, dos quais
fazia parte junto à Mãe Alice, e nunca negou a sua religiosidade.
Ainda
assim, há pessoas que afirmam que Mestre Bimba descaracterizou a Capoeira para
poder atuar; que ele ‘higienizou’, tirando elementos presentes nos rituais
anteriores aos de sua metodologia; que ele ‘embranqueceu’ a Capoeira. Reforço,
esquecem-se de que sem Mestre Bimba a Capoeira, de modo geral, não chegaria até
aqui, firme e forte, em todas as suas vertentes.
Na
Regional de hoje em dia, a democratização proposta por Mestre Bimba continua
viva. É lindo de ver pessoas de diferentes grupos, alunos novos e antigos,
gêneros e etnias distintos, tendo a possibilidade de se expressarem na roda com
harmonia e respeito ao ritual criado por Mestre Bimba e muito bem preservado
pelo seu filho, Mestre Nenel.
Aos
que não se identificam, fica o direito de ir e vir, um dos pilares da
democracia, ou seja, ‘não gosto, não vou’. Porém, comparar um ritual secular de
tamanha significância com qualquer outra Capoeira, no intuito de diminuir a
herança cultural da Regional, é no mínimo fruto da intolerância que faz com que
não se enxergue coisas óbvias e que se acredite que apenas a sua forma de ver o
mundo é a correta.
Iê,
Viva seu Bimba...
Por: Fernando Bueno (Mestre Tuti - SC)
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