No
ano passado, comemoramos o aniversário do Projeto Capoeira na Escola com uma
linda roda na Praça de Biguaçu. Uma semana depois, iniciavam-se as orientações
sobre isolamento social devido à pandemia, o que perdura até hoje e não se tem
previsão real de normalidade. Por conta desse momento histórico triste para a
humanidade, sobra apenas a possibilidade de revisitar a história do Projeto
Capoeira na Escola por meio do texto que segue, permeado pela esperança de que
em breve possamos estar juntos e seguros para uma comemoração presencial.
Sobre
o ano de início, 11 de março de 1996, e seu contexto já escrevi em outros
aniversários. Portanto, dessa vez procurei montar uma lembrança diferente, com aspectos
ainda não registrados em forma escrita. Para isso, recorri às fotos, que
trouxeram à tona muitos atos importantes, sobre os quais relatarei em forma de
tópicos. Antes, porém, segue um pouco de relato sobre o pré-projeto.
Antigamente,
se é que já é possível denominar assim os anos finais da década de 1980, não
havia projetos sociais de Capoeira na Grande Florianópolis aos moldes dos que
se têm hoje. No máximo, existiam raras bolsas para alunos carentes cedidas e
decididas pelos poucos educadores da época. Fora isso, quem quisesse treinar
tinha que pagar mensalidade, independentemente de ser criança, adolescente ou
adulto.
Vindo
de família numerosa e, no período, com grandes dificuldades financeiras,
treinei pagando mensalidade durante meus três primeiros anos, graças a alguns
quintais capinados, umas pipas vendidas e, principalmente, ao esforço colossal
da Dona Ana, minha mãe. Mas, o Plano Collor aumentou a desigualdade social e
com isso tornou-se inviável continuar honrando a merecida taxa de meu Mestre
enquanto a boia se escasseava em casa.
Lembro-me
nitidamente de quando fui relatar a situação a Mestre Pop e ele me disse que
poderia trocar uma bolsa por ajudas na academia. Feliz da vida por poder
continuar os treinos, lá fui eu ao melhor estilo “Karatê Kid”: chegar mais cedo
para varrer e passar pano na sala; pintar as paredes e grades; organizar os
instrumentos; fazer panfletagem etc.. Nas mercearias e minimercados próximos,
com a ajuda de minha bicicleta e de uma caixa de madeira, vendi até os doces e
bolos que a Dona Cleusa, então esposa de Mestre Pop, fazia como ninguém. Não à
toa, seu apelido era Cuca, a qual agradeço em memória.
Em
janeiro de 1992, com 17 anos, fui indicado pelo Mestre para dar aulas na
Associação de Moradores do Morro do Pedregal, em São José. Era uma ação
proposta pela Congregação das Irmãs Salesianas e que teve como frutos a
participação de vários alunos nas atividades do então Grupo Nação por longo
período e uma melhoria pontual nas minhas condições econômicas. Como
curiosidade, achei há pouco tempo um dos recibos e fiz a
atualização monetária. Os quarenta e dois mil cruzeiros (Cr$ 42.000,00)
percebidos valeriam hoje aproximadamente quatrocentos e sessenta reais (R$ 460,00),
o que estava ótimo para um jovem ministrando duas aulas semanais.
Um
ano depois, passei a realizar um trabalho onde estudava, o Colégio Estadual
Rosa Torres de Miranda, e também na Associação dos Servidores do BESC (Bescri),
ambos no bairro Jardim Atlântico, Florianópolis. Depois de já ingressado na
Faculdade de Educação Física, o Grupo Nação foi convidado para um evento em
Curitiba, em 1995, onde Mestre Pop teve contato com um projeto similar ao que
posteriormente ele implantou por aqui e intitulou de ‘Projeto Ginga Criança – A
Capoeira na Escola’.
Por
motivos que mereceriam muito texto, Mestre Pop funda, em 1996, o Grupo Aú
Capoeira e distribui vários alunos para fazerem seus trabalhos nas cidades de
Palhoça, São José, Florianópolis e Biguaçu. Neste último município, o começo
das aulas contou com os educadores Tuti, Bacana, Amantino e China.
Como falado no começo, a partir desse ponto já escrevi em outros aniversários, porém, creio que seja válido relembrar brevemente algumas ações feitas nestes 25 anos do Projeto Educacional Capoeira na Escola:
- A Sociedade Recreativa 17 de Maio, local de início das aulas do Projeto, foi um espaço consolidado durante muito tempo de prática cultural tendo como eixo a Capoeira. Por ali passaram grandes Mestres, verdadeiras enciclopédias: Pop, João Pequeno, Gildo Alfinete, Vuê, Ciro, Boa Gente, Toni Vargas, Pele do Tonél, Nenel, Xaréu, Cafuné, Boinha, Piloto, Mudinho, Pé-de-Chumbo, Boca Rica; sempre em sintonia com as centenas de crianças, adultos (inclusas as pessoas com deficiência) e idosos.
- As aulas do Projeto se estenderam para a Escola Especial Leandro de Azevedo (Apae) em 2001, e, como se completam 20 anos agora, vale um texto posterior específico.
- O CD ‘Declaração de amor à Capoeira’ foi produzido em 2005 e contou com a participação de mais de trinta crianças dos diversos núcleos, alunos da Apae, e dos Mestres Gildo Alfinete e Boca Rica, além da participação do então professor Habibis, e dos saudosos: percussionista Nícolas Malhome e os músicos Marcelo Muniz (ex-Grupo Engenho) e sua filha Andiara, no auxílio da produção.
- Fruto de uma coletânea de textos publicados em jornais e no próprio site, o Projeto produziu o livreto ‘Capoeira não é só jogo’.
- Levando para o Teatro a diáspora africana sob o olhar dos capoeiristas, em 2004, foi produzida a peça ‘A Raiz da Liberdade’, que agora, com a reinauguração do Teatro Adolpho Mello, em São José, clama-se por uma releitura.
- O Projeto originou uma homônima associação sem fins lucrativos declarada de utilidade publicada no município e no estado pelos serviços prestados à comunidade.
- Foi apresentada à municipalidade a importância de se ter um espaço seguro para as rodas de Capoeira realizadas na Praça Central. Com a anuência, os integrantes do Projeto literalmente colocaram a mão na massa, retirando os ‘petit paves’, soldando o arco e colocando a tela de arame, concretando e polindo a nova roda. O espaço é democrático e de uso público para qualquer grupo, seja de Capoeira ou de outras manifestações culturais.
- A Associação Capoeira na Escola propôs (Lei municipal) e produziu várias edições da Semana Afro-Biguaçuense, composta por exposições de artesanato, vestuário, livros e discos, oficinas de manifestações culturais, palestras, degustação gastronômica e apresentações artísticas.
- Eventos grandiosos como os Intercâmbios Catarinense e Nacional de Capoeira, o Simpósio Catarinense de Capoeira, o Encontro Catarinense de Capoeira Especial caminham nesse registro junto aos eventos de menor alcance quantitativo como os Festivais de Cantigas, de Acrobacias, Noites do Conto, Grupo de Estudos etc..
- A coreografia ‘África-Brasil’ foi apresentada no Festival de Dança de Joinville e foi vice-campeã do Prêmio Desterro, Festival de Dança de Florianópolis em 2013.
- Além das rodas mensais, o Projeto organizou doze edições da ‘Roda da Madrugada’, atividade que se iniciava à meia noite e se encerrava com o nascer do sol, e a roda ‘Eu já joguei Capoeira’, contando com a participação de alunos e ex-alunos.
- Recentemente, a Associação fez o resgate do folguedo do Boi-de-mamão trazendo ainda mais movimentação cultural para Biguaçu.
Por fim, caso você tenha lido até aqui, é
certo que, em algum momento, você fez/faz parte dessa história, seja como
aluno, educador, familiar, amigo, colega de outros grupos ou das escolas
atendidas, admirador, testemunha ocular, e é a você que agradeço e divido os
parabéns por sua contribuição nessa honrosa jornada.
Axé.
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