sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Artigo:

Chamada na ‘Benguela’

Fui a um evento de um amigo de longa data e vivenciei, pela segunda vez em todos os meus vinte e dois anos de capoeiragem, alguém fazer uma chamada (passo a dois) no toque de ‘Benguela’. A primeira vez foi há uns quinze anos; na época eu não tinha o senso crítico de hoje, tirei uma onda do camarada e ficou por isso. Agora, nessa segunda vez, não posso me furtar de escrever algumas reflexões, sob pena de ser conivente com as diversas reações dos capoeiristas também presentes e de negar o meu convívio com a Fundação Mestre Bimba.
Após um tempo de andamento, o toque pedido foi “Benguela”. Os instrumentos estavam dispostos da seguinte forma (dir. p/ esq.): agogô; atabaque; três berimbaus e dois pandeiros. Houve uma rápida troca de informações entre os componentes da bateria, pois quem estava no berimbau grave (Berra-boi) é defensor da Capoeira Angola; portanto, distanciado por opção de um toque derivado da Capoeira Regional. Vendo o impasse, alguém disse: “É o toque de Angola com mais uma batida da nota presa (com a pedra).”.
Parece uma pergunta batida, mas é necessária para esse texto: “É Banguela ou Benguela?”. Mestre Toni Vargas sugere, em seu último disco, perguntar a Seu Bimba. Sintetizo essa sugestão no fato de olhar a capa do disco de Mestre Bimba - Curso de Capoeira Regional - e constatar que ali está escrito “Banguela” (com ‘a’). Alguns até cometem a injúria de dizer que Mestre Bimba queria dizer “Benguela”, mas não o fez por questões de dificuldade de pronúncia. Mestre Bimba, com a assessoria de seus alunos universitários, que dialogavam até sobre a melodia e o encaixe das letras nas quadras, permitiria um “erro gráfico” em seu disco? Penso eu que não. Assim, para o Mestre e criador do toque, era Banguela mesmo.
Mestre Nenel, confirma e acrescenta que o toque de Banguela não é “o toque de Angola com mais uma batida da nota presa”; demonstrando, com fidelidade ao disco, a base do toque como sendo: “um chiado, uma solta (sem a pedra) e apenas uma presa (com a pedra)”. Segundo ele, desde que seja harmonioso com o que está na gravação de Mestre Bimba, tudo o que vem além da base citada seria variação do toque criado por seu pai.
A visão holística de Mestre Nenel permite afirmar que o toque de Benguela (com ‘e’) até existe, mas que não foi criado por Mestre Bimba. Alguém misturou o toque de Angola com variações da Banguela; permitiu tocar numa bateria; e, para completar, soltou aquela injúria acima para denominar a sua criação de Benguela.
Vale destacar que os toques da Capoeira Regional – Banguela, Idalina, São Bento Grande, Amazonas, Iúna, Santa Maria e o Hino - são tocados apenas em charanga: um berimbau e dois pandeiros.
A Capoeira é essencialmente dialética e dinâmica; e por ser uma manifestação que se espalhou pelo mundo muito recentemente, recebe milhares de análises em seus diversos aspectos – teórico, técnico, didático, tático, filosófico etc. - e cada uma delas baseada na realidade de cada norteador de um trabalho (entenda-se: Mestre, Professor, Instrutor etc.). Até aqui, vemos a fortaleza da Capoeira: a junção dos diversos pontos de vista que fazem com que ela não seja monopolizada em única verdade; e, sim, descentralizada em diversas faces de uma mesma manifestação. O que não é salutar é a imposição de uma verdade em detrimento de outra, gerando a perda de criatividade e a estabilização dos conhecimentos.
Desta forma, é difícil dizer que algo é errado na Capoeira. Como “condenar” (com risos, espanto etc.) o cidadão que fez uma chamada no toque de “Benguela” tocado numa bateria de Capoeira de Angola? Eu prefiro deixá-lo com a sua verdade.

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